#DoceÉODossiê04 - Homenagem à Carlos Coimbra, diretor do Crepúsculo de Ódios (Jundiá Filmes, 1959)


por Rodrigo Tangerino* (arcabouço e subsídios da publicação original cá abaixo!)
Essa semana a gente homenageia Carlos Coimbra (1925-2007), cineasta responsável pela direção e parte da montagem de "Crepúsculo de Ódios", primeiro e único longa da Companhia Cinematográfica Jundiá Filmes, de 1959. Através dos livros-depoimento da Série Aplauso, editada pela Imprensa Oficial, esse pioneiro e moderníssimo projeto é um resgate de histórias de grandes nomes das artes e da comunicação brasileiras e pode ser baixado gratuitamente no site da instituição.

No "Capítulo IV - A fama de faz-tudo", que segue abaixo, ele fala sobre o Crepúsculo e as dificuldades enfrentadas ao longo do longa: "Eles (os diretores da Jundiá) não tinham conseguido reunir todo o dinheiro da produção e, quando chegou na metade, acabou a verba. Nos últimos dias, ficávamos todos parados, lá no meio daquelas pedras, sem dinheiro para nada." Outra passagem que ilustra a precariedade da produção é a relacionada ao transporte de equipamentos e equipe: "E a charretinha transportava os atores e técnicos. Para diminuir o número de viagens, colocávamos cada vez mais gente em cima dela. Acho que o cavalo foi o verdadeiro herói daquela história, puxando aquela gente toda."
Uma informação curiosa contida no depoimento é a afirmação de que Inocêncio Mazzuia, um dos diretores da Jundiá Filmes e roteirista da ficção em questão, mantinha contato - ou pelo menos tentava - com gente importante de Hollywood: "Havia até um jornalista que se correspondia com alguns figurões de Hollywood. Seu sonho era escrever um roteiro. Tentou vários, mandava para Hollywood e os americanos nem lhe davam resposta. Pois bem - ele escreveu mais um roteiro, que eu usei como argumento."
Aurora Duarte, atriz na trama do Crepúsculo, hoje detentora dos direitos autorais do filme, também ganhou uma edição caprichada sobre suas andanças teatrais e cinematográficas. Logo mais ela aparece por aqui!

Trecho do livro "Carlos Coimbra: um homem raro", por Luiz Carlos Mertem.
Capítulo IV - A fama de faz-tudo
Em 1960, fiz o filme que considero divisor de águas em minha carreira, A Morte Comanda o Cangaço. Entre Dioguinho e ele há um hiato de três anos, mas não fiquei parado. Em 1958, surgiu a oportunidade de fazer uma fita em Jundiaí e dirigi Crepúsculo de Ódios, que também é conhecido como Nas Garras do Destino. Foi meu primeiro filme fotografado pelo Tony Rabatoni e o argumento era de um professor de Jundiaí, Inocêncio Mazzuia (Mazzuia), em parceria com José Júlio Spiewak, que depois se firmou como crítico. O roteiro, de qualquer maneira, é meu, assim como a direção e a montagem. É outro filme rural, de aventura e foi feito meio no desespero. Estava sem trabalho quando recebi a proposta desta direção e não vacilei muito, mesmo que fosse outra loucura. Meus primeiros filmes surgiram todos assim - eu queria fazer cinema, queria viver de cinema e quando surgia a oportunidade de fazer alguma coisa eu me agarrava porque sabia que o importante era estar na ativa. Havia um italiano que fora câmera do Dioguinho e se mudou para Jundiaí. Era falastrão, boa gente e rapidamente se enturmou com a turma da cidade. Conversa vai, conversa vem, ele arrumou um grupo de pessoas que gostavam muito de cinema. Entre elas, havia até um jornalista que se correspondia com alguns figurões de Hollywood. Seu sonho era escrever um roteiro. Tentou vários, mandava para Hollywood e os americanos nem lhe davam resposta. Pois bem - ele escreveu mais um roteiro, que eu usei como argumento, mas antes disso me chamaram para acertar as bases, para saber se aceitava. Topei, mas fui sincero - disse que esse negócio de cinema era complicado, que era preciso levantar todo o dinheiro, porque começar uma filmagem só com metade do orçamento era muito desgastante. E mais do que desgastante - pelas minhas experiências anteriores sabia que um filme interrompido no meio terminava custando o dobro. Comecei a trabalhar no roteiro. Um mês depois, me chamaram para assinar contrato com a empresa deles, a Jundiá Filmes. Terminei indo várias vezes a Jundiaí porque eles queriam usar muita gente da cidade no projeto. Testava possíveis atores, via quem possuía aptidões técnicas que pudessem ser usadas para a formação de uma equipe. Chamei a Aurora Duarte e o Luigi Picchi para trabalhar comigo de novo e dei a primeira oportunidade a um estreante, que me pareceu talentoso. Não errei - era Carlos Zara. Também usei a Norma Monteiro, que era uma menina bonita, boa atriz. Essa Norma, tempos depois, cometeu uma loucura. Brigou com o namorado e ficou tão desatinada que saiu caminhando e se atirou do Viaduto do Chá. Poderia ter feito carreira no cinema, mas cometeu este gesto estúpido, por causa de um amor não correspondido.

Se fosse um filme, todo mundo ia achar que era melodramático, exagerado, mas foi o que ocorreu na realidade. Crepúsculo de Ódios conta a história de um assassinato. Um sujeito aparece morto numa cidade do interior e tudo indica que o assassino é esse rapaz, interpretado pelo Carlos Zara. A população fica revoltada e quer linchá-lo, mas ele foge e se esconde no mato. Um advogado importante da cidade se interessa pelo caso e resolve procurar o cara. Era o Luigi Picchi e sua namorada era a Aurora Duarte. A Norma fazia a namorada do Zara, mas também era apaixonada pelo Luigi. Criava-se um triângulo, aliás, um quadrilátero amoroso. A Aurora queria que o Zara fugisse, a Norma queria que ele se entregasse, porque achava que era inocente e conseguiria prová-lo, e o Luigi, implacável, seguia atrás. Não ficava muito claro o interesse do Luigi no caso. Esta era a revelação final. A perseguição termina naquelas pedras lá em Jundiaí. Os dois brigam, o Luigi cai mortalmente ferido e confessa que o assassino é ele. Filmei em preto-e-branco e foi outra odisseia na minha vida. Apesar do que eu havia dito para eles, o pessoal da Jundiá não ouviu meus conselhos. Eles não tinham conseguido reunir todo o dinheiro da produção e, quando chegou na metade, acabou a verba. Nos últimos dias, ficávamos todos parados, lá no meio daquelas pedras, sem dinheiro para nada. Agora, é engraçado, mas sofremos muito naquela equipe. No filme, a Norma ficava correndo atrás do Zara numa charretinha e, quando acabou de vez o dinheiro, era só aquele transporte que tínhamos. Um dia, a charretinha arriou. Não aguentou tanta ida e vinda. Foi o caos. Por esta época, já estava desenvolvendo um... um método; não vou dizer estilo. Sempre gostei de usar o carrinho. Em meus filmes, há muito movimento de câmera. E o problema é que eu só tinha uma câmera. Aliás, era a mesma que eu vinha usando desde o meu primeiro filme, uma Debrie Parvo-L. E era complicado botar e tirar a câmera do carrinho e dos trilhos. Exigia tempo, transporte. Tempo, a gente tinha de sobra, mas com a charretinha era difícil transportar as coisas de um lado para outro. Não admira que a charretinha tenha arriado. Não era possível colocar a câmera nela, porque trepidava muito. E a charretinha transportava os atores e técnicos. Para diminuir o número de viagens, colocávamos cada vez mais gente em cima dela. Acho que o cavalo foi o verdadeiro herói daquela história, puxando aquela gente toda. Estava no meu terceiro filme e nenhuma das histórias havia sido escolhida por mim. Escrevia o roteiro, fazia mudanças nas histórias pensando no desenvolvimento dramático e no ritmo, mas o ponto de partida era sempre proposto pelos produtores. Os críticos escreveram sobre Crepúsculo de Ódios que eu conseguia imprimir um ritmo forte à trama, mesmo trabalhando com poucos recursos e era o que eu gostava de fazer. De alguma forma, era a maneira que tinha para imprimir a minha assinatura.
... Mas eram pequenos distribuidores independentes e, por conta disso, os filmes não aconteciam, permaneciam restritos. O caso do Crepúsculo é exemplar. Quando a charretinha quebrou, ficamos um tempão parados. Não havia dinheiro para nada e eu indo e vindo na rota Jundiaí-São Paulo. Minha filha nasceu nesta época. Eu estava filmando em Jundiaí e a minha mulher ficou com a mãe dela, esperando para ter o filho a qualquer momento. Veio uma menina, a Carmem Flávia. Estou lá, no set, e recebo aquele telefonema dizendo que ela já está com as dores. Larguei tudo e tentei voltar para São Paulo imediatamente. Era duro - um diretor de cinema no seu terceiro filme e não tinha um carro. Tentei conseguir uma passagem de ônibus, mas não tinha para aquele dia. Felizmente, havia um ator jovem, um playboyzinho que tinha uma moto. Ele me disse: ‘Monta na garupa que eu te levo’. Viemos feito loucos naquela estrada. Ele, correndo demais; eu, que nunca tinha andado de moto, louco de medo e agarrado nele. Mas chegamos, peguei a mulher e corremos para o hospital. Era rebate falso. Voltei para Jundiaí e, quatro ou cinco dias depois, recebo novo telefonema. Desta vez o Carlos Zara, que tinha carro, me trouxe para São Paulo. Criou-se uma situação curiosa - minha mulher pediu que eu entrasse com ela na sala de parto. Entrei e o Zara ficou esperando na ante-sala, fumando feito um louco. Por isto, digo que o Zara viveu sua verdadeira experiência de pai com o nascimento da minha primeira filha. Foi uma fase difícil. Não podia deixar minha mulher sozinha, com um bebê. Filmava durante o dia em Jundiaí e toda noite voltava a São Paulo. Minha filha chorava muito. Nunca vi um bebê berrar tanto. A noite toda ela berrava e eu cheguei a uma estafa. Filmava em externas, debaixo do maior sol, pegava a estrada e ficava a noite toda acordado. Era tudo muito complicado, na época. Entre o início da produção e a interrupção de Crepúsculo de Ódios passou-se um ano, talvez mais. Comecei em 1957 e o filme ficou pronto só em 58.

(Publicado originalmente em 04/06/2017, na Página do Projeto Jundiá Filmes - dedicada à pesquisa e divulgação da Companhia Cinematográfica Jundiá Filmes, caminho work-in-progress desse nosso desvelamento da contribuição jundiaiense ao Cinema do Interior Paulista e ao Nacional -, o texto abaixo era mais uma entre as várias homenagens que a gente prestou ao longo desses treze anos à frente da edição da Página 

.cartaz original do longa Crepúsculo de Ódios, de 1959, a única produção em ficção da Jundiá Filmes. (acervo: Nina e Rosa Ana Coccheo, viúva e filha de Élio Coccheo)

Sinopse: Luís supõe ter assassinado o filho de um fazendeiro, tradicional coronel do interior, que lhe jura vingança. Um advogado, ao final o verdadeiro criminoso, procura salvar Luís, a esta altura envolvido com duas mulheres, a noiva do próprio advogado e a filha de um adversário do coronel. O confronto com os capangas que perseguem Luís e o advogado soluciona a tensão.

Elenco:
Duarte, Aurora (Laura)
Picchi, Luigi (Ricardo)
Zara, Carlos (Luís)
Avelar, Léo
Carvalho Junior, José de
Ranzini, Heitor
Bedin, Reynaldo
Penteado, Sebastião
Malagoni, Hugo
Briganti, Onesio
Melo, Decio de
Xavier, Francisco
Participação especial:
Monteiro, Norma(Rosinha)

Ficha Ténica:
Direção: Carlos Coimbra
Argumento: Mazzuia, Innocencio; Spiewak, José Júlio
Roteiro: Carlos Coimbra
Diálogos: Carlos Coimbra
Direção de produção: Melo, Décio de
Assistência de produção: Bedin, Reynaldo; Amaral, Flávio; Tracci, Mário
Gerente de produção: Mean, Américo
Continuidade: Leite, Elvira Costa
Direção de fotografia: Cocheo, Elio
Assistência de câmera: Owintchenko, Eugenio; Miura, Ariyoshi
Fotografia de cena: Miura, Ariyoshi
Operador: Attili, Giorgio; Rabatoni, Tony
Chefe eletricista: Warnovsky, Sérgio
Maquinista: Portela, Alberto; Piovesan, Pedro
Montagem: Carlos Coimbra
Maquiagem: Torres, Flávio
Música: Simonetti, Enrico
Companhia Produtora: Jundiá Filmes
Companhia Distribuidora: Importadora e Distribuidora Barone S.A.

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