"Aurora Duarte: rosicler cinematográfico" ou "Aurora Duarte: autora desarte"




2020: com pouco mais de dois meses de intervalo, dois grandes representantes do cinema nacional foram estrelar o céu: a atriz, documentarista e produtora Aurora Duarte (1937 - 2020), aos 83 anos e o montador, professor e pesquisador Máximo Barro (1930-2020), aos 90. Morreram em São Paulo, Aurora em agosto e Máximo em outubro.

Quem abre o diálogo entre a LESO e o Prof. Máximo é a produtora cultural Vânia Feitosa; quem nos aproxima de Aurora é Máximo. Detentora dos direitos autorais do longa jundiaiense "Crepúsculo de Ódios", dirigido por Carlos Coimbra em 1959 - a produtora Jundiá Filmes vem sendo estudada por nós a partir do livro de atas preservado desde 2009 -, Aurora era muito próxima do Professor, que a entrevistou em 1982 para um projeto de memória do Cinema Paulista conduzido pelo MIS - Museu da Imagem e do Som/SP, disponível em áudio para consulta.

No último papo com Aurora, ficamos de marcar uma entrevista - o roteiro estava pronto já - para o projeto sobre a Jundiá; com Máximo, pedi ajuda pra identificar as fotos do "Crepúsculo" que fazem parte do acervo da Cinemateca Brasileira.

Não reproduzo os apontamentos que ele me enviou por e-mail: vou estocá-los para uma publicação posterior em homenagem ao montador dA Margem (Ozualdo Candeias, 1967, marco-zero do Cinema Marginal); quanto ao texto em homenagem à Aurora, mantenho-o intacto, como seria publicado naquele 2018, inclusive com os dois títulos possíveis: "Aurora Duarte: rosicler cinematográfico", "Aurora Duarte: autora desarte".

ADEUS DEUSXS.


"O cinema na minha vida, realmente, foi mais uma fatalidade do que uma vocação. 

Ele tem me perseguido a vida inteira."

(entrevista à Máximo Barro, 1982, MIS - São Paulo)

Nascida em Olinda, Pernambuco, em 17 de abril de 1937 - completou 82 no último dia 17 - Aurora Duarte é o nome artístico de Diva Mattos Peres, cunhado pelo gigante cinematográfico brasileiro de projeção internacional Alberto Cavalcanti (1897-1982), de quem foi assistente em diversas produções e musa em "Canto do Mar" (tinha 16 anos à época), longa de 1953 que concorreu à Palma de Ouro em Cannes, França. Atriz, produtora, distribuidora, poetiza e agitadora cultural, Aurora é uma daquelas mulheres que carregam consigo as armas necessárias para o exercício diário da expressividade humana.

Filha de pai médico (espanhol) e mãe enfermeira (nordestina), sua intenção inicial era a de seguir a medicina: "Mas aconteceu que por uma dessas coisas da vida eu tive um probleminha de saúde, um problema de poeta, um problema pulmonar, e não pude seguir os meus estudos. E foi quando apareceu a oportunidade de trabalhar na rádio, que era um trabalho ameno, junto com o Teófilo de Barros Filho, que tinha feito um filme chamado "Mãe" (1948). A ideia do Teófilo não era que eu trabalhasse na rádio, mas ele tinha um plano de fazer um filme chamado "Sargaço" e queria me manter por ali até ele poder fazer o filme. O filme não foi feito mas através do Teófilo eu comecei a me interessar por cinema e me aproximei de um grupo de documentaristas e passei a colaborar na feitura de documentários." (***)

"A minha primeira ideia de cinema foi de fazer um documentário sobre o carnaval de Pernambuco com som direto porquê todos os filmes eram feitos colocando uma música em cima. Então eu gravei o som no meio da rua e depois coloquei no filme. Então isso foi um sucesso tão grande que havia filas pra ver o documentário de meia hora. Esse documentário passou em todo o Brasil e foi um êxito. Eu tinha pouco menos de dezesseis anos quando tive essa ideia." (***) Essa experiência pioneira da já diretora olindense acerca do som direto - cuja técnica de gravação que sincronizava áudio e imagem se deu no Brasil no começo dos anos 60 -, entre outras execuções bem sucedidas nas quais registra elementos da cultura popular pernambucana, é somente uma de suas vibrantes veias artísticas. "No nordeste me conhecem mais por ser poeta." (***), fato que a tornaram conhecida no meio das artes na cidade, facilitando o diálogo Aurora-Cavalcanti. 

Um dos documentos definitivos para a compreensão da personalidade múltipla de Aurora Duarte é o seu "Faca de Ponta" (2010), escrito em prosa poética, bem diferente dos outros títulos da Série Aplauso-Perfil, editados pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Nele, os leitores poderão ter uma noção do domínio da palavra que a autora adverte - e é assim também quando fala, demonstrando sempre um êxtase pela palavra também em suas entrevistas gravadas - mas não foi bem recebido pelos editores da Coleção: "Diferente dos outros livros, que são depoimentos escritos, eu decidi contar a minha autobiografia de uma forma poética, trazendo os acontecimentos de uma forma mais subjetiva" (*). Para nós, que estamos preocupados antes com a "linguagem" do que com a "língua" - para manipular dois conceitos que vêm da Teoria da Informação de um dos maiores semioticistas brasileiros, Décio Pignatari - é de grande valor comunicacional observar, passados em revista, décadas de entraves e encontros artísticos transmitidos não por uma mecânica verborrágica "de sistema", mas por um saboroso texto poemático e vívido.

Foi o montador, professor, historiador e pesquisador de cinema Máximo Barro quem nos colocou em contato com a Aurora, fornecendo-nos seu telefone, no final de 2016; eram amigos de longa data. O autor do clássico "Caminhos e Descaminhos do Cinema Paulista - A Década de 50" (1997 - Edição de Autor), no qual traça, entre outras histórias, a saga de produtoras de cinema de cidades do interior de São Paulo, foi também o responsável por uma série de entrevistas de História Oral - a narrativa de Aurora Duarte é de 1982 - com personalidades do Cinema Paulista da década de 1950, co-idealizada e hospedada no acervo digital do MIS - Museu da Imagem e do Som de São Paulo. Máximo é igualmente amigo de Vânia Feitosa, produtora cultural jundiaiense, parceira que indicou o estudioso para a etapa das entrevistas sobre a Jundiá. As informações que coletamos foram seminais para compreender a índole epocal em que se deu a manifestação cinematográfica jundiaiense, dando nova amplitude especulativa ao nosso trabalho. Ao conhecer o Livro de Atas (1955-1963), caderno brochura com as reuniões manuscritas em detalhes - que levamos  regularmente à público através da página dedicada à Jundiá - afirmou: "É um documento inédito, não existe nada parecido na história de outras produtoras, não que eu tenha notícia."

Vale a pena à essa altura, para fins didático-operacionais, compor um pequeno arcabouço de como se deu o processo do Crepúsculo. O argumento foi escrito pelo jundiaiense Inocêncio Mazzuia - jornalista, Sócio-Fundador e Presidente da Jundiá Filmes - em parceria com o ator, produtor e roteirista polaco-brasílico José Júlio Spiewak -  e o roteiro é assinado por Carlos Coimbra, que também dirigiu e montou o longa. Coimbra, em seu livro-depoimento da mesma Coleção Aplauso, "Um Homem Raro" (2004, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo), editado pelo jornalista e crítico de cinema Luiz Carlos Merten, dá-nos uma sinopse direta do filme: "Crepúsculo de Ódios conta a história de um assassinato. Um sujeito aparece morto numa cidade do interior e tudo indica que o assassino é esse rapaz, interpretado pelo Carlos Zara. A população fica revoltada e quer linchá-lo, mas ele foge e se esconde no mato. Um advogado importante da cidade se interessa pelo caso e resolve procurar o cara. Era o Luigi Picchi e sua namorada era a Aurora Duarte. A Norma fazia a namorada do Zara, mas também era apaixonada pelo Luigi. Criava-se um triângulo, aliás, um quadrilátero amoroso. A Aurora queria que o Zara fugisse, a Norma queria que ele se entregasse, porque achava que era inocente e conseguiria prová-lo, e o Luigi, implacável, seguia atrás. Não ficava muito claro o interesse do Luigi no caso. Esta era a revelação final. A perseguição termina naquelas pedras lá em Jundiaí. Os dois brigam, o Luigi cai mortalmente ferido e confessa que o assassino é ele". Outra fonte de relevo, dessa vez proveniente de uma importante figura acervológica de Jundiaí, o jornalista Celso Francisco de Paula, é a "Enciclopédia Cultural De Paula", publicada em 2006 e que aglutina detalhes da vida artístico-cultural da cidade, sendo, por isso mesmo, uma especial obra para consultas de tipo primária. Nela, escreve o autor: "Em 1959, a fita foi lançada com o título "Crepúsculo de Ódios", ocorrendo a estreia em uma sessão de gala no Cine Ipiranga, com renda em benefício das entidades assistenciais. Na ocasião do lançamento, uma companhia de São Paulo teria apresentado proposta para distribuir o filme com exclusividade em todo o território nacional, mediante, inclusive, um bom adiantamento financeiro à Jundiá Filmes, porém a mesma foi recusada pelos acionistas. A distribuição no Rio foi feita pelo Circuito Plazza."

Aurora - pra arrematar esse que pode ser visto, no presente crítico ao quartence a nossa re-leitura daqueles acontecimentos, como o resultado de um projeto que o grupo jundiaiense procurou levar adiante, quaisquer que fossem suas implicações, como o "terreno firme, com um bom alicerce", para que no futuro pudessem "ver o nosso esfôrço coroado de êxito, não só por nós, como por esta nossa Jundiaí, que guarda em seu aconchêgo o éco cantante de tôdas as nossas aspirações, como uma concha prendendo o murmúrio do mar" desejado na gênese da Jundiá -, no depoimento de 1982, conta como foi a aproximação com Carlos Coimbra, reforçando retrospectivamente os erros de partida: "Aí entra o Coimbra. A gente que é atriz encontra muito uma pessoa que diz assim: "eu escrevi um papel que só você pode fazer". Então o Coimbra disse: "eu tenho um papel que só você pode fazer. É de uma mulher que ama dois homens da mesma maneira. Não é dois sentimentos diferentes, ela ama dois homens da mesma maneira. Então eu pensei: é você que vai fazer esse papel". Então ele me deu o roteiro e a história realmente era muito bonita. O ponto de partida era do José Spiewak e o roteiro do Coimbra. E o roteiro era muito bonito. Você lendo assim... tinha problema de linchamento, tinha problemas passionais. Agora, o filme foi feito em condições precaríssimas. Inclusive esse filme tem um lance muito interessante. Teve um dia que não teve transporte para ir à filmagem e a equipe toda fez greve porquê não havia maneira de chegar à filmagem e eu ia à cavalo à filmagem. Mas o Flávio Torres, que era o maquiador, proibiu que eu fosse à cavalo porquê eu chegava com a maquiagem desmanchada porquê a viagem era longa e eu fui à carroça. O filme foi realmente muito desorganizado. Nós ficávamos na Fazenda Santa Elisa, que tem água mineral, uma fazenda de café... eu tenho gratas recordações da paisagem. O filme começou muito mal porque, pra você ter uma ideia, eu fui fazer o filme por causa do Coimbra e eu assinei o contrato e um mês depois eu ainda estava em São Paulo porque o filme não tinha começado, mas eu já estava ganhando, e evidentemente outras pessoas também na mesma situação. Quando o filme começou já estava com um mês de salário de algumas pessoas né? Então começamos o filme e depois vieram os problemas". (***)

Demorou um pouco para que conseguíssemos o primeiro contato com Aurora Duarte, ocorrido no segundo semestre de 2017: "Eu estou curiosa em saber o que você está aprontando aí em Jundiaí!" (*). Expliquei que tratava-se de uma pesquisa sobre a Jundiá Filmes - "cinematográfica" jundiaiense que nasce em 1955 graças ao empenho e sonho de um grupo de artistas da cidade (no "Histórico-Prefácio ao Livro de Atas está: "Movidos por nosso ideal de artistas, vivíamos sonhando em dar a Jundiaí uma companhia cinematográfica, à altura de seu progresso e que pudesse, futuramente ser o orgulho de nossa querida cidade.") - e, por essa via consequente, também sobre os manes de Crepúsculo, único longa produzido pela empresa, iniciado em 1957 e lançado dois anos depois, no qual Aurora Duarte dá vida à Laura, uma mulher que "ama dois homens de maneiras diferentes", síntese que o próprio Coimbra remeteu à atriz na época do estabelecimento do elenco. 

Aurora, do outro lado, ocupando-se em trilhar seus projetos atuais e suas inúmeras viagens pelo Brasil produzindo cinema, deu escuta às nossas proposições com muito interesse - nosso trabalho tangencia não só sua rápida passagem pela terra das videiras, mas também corresponde à um hemisfério mais amplo, historiográfico, já que, com a falência da Jundiá em 1963 (um declínio sucessivo, como se estampa reunião após reunião) ela compra os direitos de manipulação comercial da fita e passa a ser a "dona" do filme -, pontuando a conversa com lembranças das filmagens, ressaltando elucidativos pormenores daquela produção: "Como quem estava envolvido no filme era uma turma toda inexperiente, tiveram que juntar um pessoal com experiência. Mas é um filme bem feito, um filme histórico, que marcou uma época. Eu gostei muito de ter trabalhado aí. Outra coisa: O Crepúsculo de Ódios teve uma coisa muito importante. Os artistas paulistas não ganhavam prêmios nos festivais do Rio e eu ganhei um prêmio importante lá, o prêmio da crítica com o Crepúsculo. Então, uma das viagens que eu fiz pro Rio foi exatamente pra receber esse prêmio, o Prêmio Especial da Crítica do Rio de Janeiro, um prêmio que só eu ganhei. Os críticos do Rio não davam prêmios pros filmes daqui (de São Paulo) e nem eu imaginava que o filme era importante." (*) Essa notícia é realmente fabulosa para um filme com o histórico turbulento e atrapalhado como atestam os depoimentos aqui coligidos.

Aurora realmente mantinha um respeito grande pelo filme e achava-o "bem feito". Certamente impulsionada pela imprevista repercussão que o filme suscitou no Rio de Janeiro, a obtenção dos direitos da obra tinha também um outro objetivo: "A gente tinha feito projetos de relançar e tudo. E quando eu tava filmando, tinha muita gente e depois ficou sem ninguém e então não conseguimos reavivar o negócio do filme. Mas a última coisa foi que eu comprei os direitos do filme justamente prevendo isso aí. Mas depois no caso do Crepúsculo aconteceu essa minha temporada na Alemanha e o fato de o Mazzuia ter morrido". (*) Atualmente, por vias legais, o Crepúsculo é propriedade de Aurora Duarte - o documento de cessão, datado e assinado faz parte da coleção dos materiais da Jundiá Filmes, arquivados e prontos para consulta no Centro de Memória de Jundiaí - e existe uma cópia digitalizada acessível - perante a autorização da proprietária - no acervo da Cinemateca Brasileira em São Paulo. 

Luigi Picchi, um dos atores mais premiados do cinema brasileiro das décadas de 1950-60, que interpreta Ricardo, namorado de Laura (Aurora) na estória, é lembrado também de forma bastante carinhosa, encerrando nossa conversa: "É uma pena o Luigi Picchi não estar mais vivo porquê ele gostou tanto do filme. A gente uma vez foi pro Rio fazer uma exibição lá e no avião, ele já havia feito muitos filmes, e ele falava do filme como se fosse uma coisa que ele tivesse feito prazeirosamente sabe? E ele está ótimo no Crepúsculo de Ódios." (*)

"Mas muito interessante que você esteja interessado por isso, viu Rodrigo!" (*) Fica então, agora, como tarefa da pesquisa, o agendamento de uma entrevista com Aurora Duarte, completando o acervo informacional dos agentes que participaram da produção jundiaiense. Já foram realizadas quatro entrevistas: Reinaldo Bedin (Sócio-Fundador da Jundiá Filmes, responsável, por muitas vezes, em secretariar e anotar as reuniões da empresa, tendo tempo também para atuar no Crepúsculo), Gildo Nery Gatto (Sócio-Fundador da Jundiá Filmes, produtor e articulador nas decisões e proposições tomadas pela cinematográfica), Dorival Colombera (amante do cinema, começou suas atividades no teatro amador e, apesar de não ter participado da Jundiá Filmes, suas informações e seu acervo pessoal foram de grande valia para a compreensão do ambiente pré-Jundiá, que a partir de iniciativas de grupos isolados arriscavam algumas produções) e Máximo Barro (a faceta "pesquisador" do montador-professor foi decisiva para iluminar os caminhos do nosso trabalho - como já apontado -, além de ter sido a ponte entre nós e Aurora Duarte)

Obrigado Aurora! E ao público: aguardem novidades!

Para dinamizar a leitura, criamos uma legendagem. Os períodos são de três ordens, seguidas de seus ícones, e outras duas laterais, mas não menos importantes: 

- "ligação para Aurora Duarte", 2017, acervo LesoVídeoFilmes - Ícone: *

- "Faca de Ponta", livro-depoimento, 2010, "Série Aplauso, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo" - Ícone: **

http://aplauso.imprensaoficial.com.br/livro-interna.php?iEdicaoID=287&leia=1

- "Coleção Cinema Paulista na Década de 1950", Narrativa/História Oral, 1982 (entrevista com Aurora Duarte; Coordenação: Máximo Barros- MIS - Museu da Imagem e do Som - SP) - Ícone: ***

http://acervo.mis-sp.org.br/buscacompleta?field_busca_field_value_op=allwords&field_busca_field_value=aurora+duarte

- "Carlos Coimbra - Um Homem Raro" - por Luiz Carlos Merten, 2004, "Série Aplauso, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo"

https://livraria.imprensaoficial.com.br/media/ebooks/12.0.812.945.txt

- "Matéria sobre a Jundiá Filmes" - JUNDIAQUI, 22 de maio de 2017 - Trecho da "Enciclopédia De Paula", por Celso de Paula

http://www.jundiaqui.com.br/comer-e-beber/ate-carlos-zara-participou-de-filme-da-jundia-2/

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